quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A CIDADE DO FUSCA

Em Cunha, quase todo mundo tem Fusca. Quem não tem quer ter. Quem não tem e não quer ter precisa pagar para alguém que tenha. O carro, extinto pela Volkswagen há exatos dez anos, ainda é a única salvação para ir e vir pelas vertiginosas ladeiras de terra e de paralelepípedo da cidade. Zé Cuta tem 79 anos, 1,88 metro de altura e calça 47. Uma vez por semana, ele enche de queijo o banco traseiro de seu Fusca 1300, ano 79, dobra-se para caber no carro e dispara para vender o produto de seu rebanho. Nos últimos dias de maio, o mineiro não escondia certa tristeza enquanto jogava conversa fora no banco da praça da Matriz. Os negócios vão bem, mas ele esforçava-se para resistir ao pedido dos 14 filhos, 51 netos e 13 bisnetos. A prole aventava mudar o endereço da festa do aniversário de 70 anos da esposa. "Eles moram fora, trocaram os Fuscas e não conseguem mais chegar aqui em casa." Na cidade, encravada entre as serras da Bocaina e do Mar, no interior de São Paulo, só o Fusca salva. Quem mora lá sempre sobe ou desce. Difícil encontrar uma rua plana. O preço baixo, a manutenção simples e, principalmente, a tração traseira - mão na roda para superar as rampas do dia-a-dia - são os trunfos que garantem a preferência. A esse lado racional soma-se o orgulho de ser o feliz dono do mais famoso VW de todos os tempos. Não há estatística oficial, mas calcula-se que 2000 deles circulem pelo município de 26000 habitantes. É um para cada 13 cunhenses. Noves fora, é como se mais de 1 milhão deles ainda rodassem pela cidade de São Paulo. Para chegar à roça onde cultiva milho e feijão, Morésio de Oliveira França, 54 anos, também acelera um Fusca - motor 1500, ano 72. São 12 quilômetros do centro até a região do Macuco, famosa pelas incríveis inclinações de suas estradas. "O Fusca é o meu cavalo", compara o roceiro, que ao chegar ao milharal resolveu mudar de lugar um dos quatro bezerros do pasto. Para isso, bastou laçar o animal, amarrá-lo, tirar o banco do passageiro e acomodar ali o filhote. A bordo do New Beetle - o "novo Fusca" -, sigo Morésio. Em vão, tento manter a mesma tocada. Baixo e sem a idolatrada tração traseira, o carro sofre com as pedras e as rodas dianteiras giram em falso nas subidas. Paciente, Morésio espera e ri ao confirmar o que já havia sugerido: "Tem certeza que quer ir ao Macuco? Esse carrão é chique, mas não dá conta, não". Amauri Osório, 53 anos, dono de um modelo 71, sabe que não compensa usar seu Escort na roça. "O Fusca sobe fácil, poupa os pneus e gasta menos combustível." Segundo ele, o preço do carro em Cunha é até 30% mais alto. Por isso, apesar de a cidade ser fonte para interessados no carrinho, é preciso estar disposto a pagar mais. "O negócio é comprar fora e tentar vender aqui", diz Alcindo Mestre, 42 anos, corretor de Fusca. Ao lado de João dos Passos e Rubinho, Alcindo faz ponto na esquina da praça da Matriz de olho nas oportunidades de negócios com o carro. Nas transações, entram Fuscas, lotes de terra, televisões e até bezerros. Mestre havia negociado naquela semana um modelo em troca de 1000 quilos de bezerro - o equivalente a dez animais. "Deu 2500 reais." Para os donos das oficinas de Cunha, não falta serviço. Se por um lado o mito do carro inquebrável se confirma, por outro a enorme frota e os 2000 quilômetros de estradas de terra garantem casa cheia para Darcy Castilho, de 42 anos. O funileiro cansa de trocar os pára-lamas traseiros do Fusca. "É muita pedra. E tem o problema da urina das vacas, que apodrece a lataria", conta Darcy, dono de um Fusca 79 branco, tinindo de novo. De cada 15 carros que batem à porta de sua funilaria por mês, 14 são Fuscas. "Aqui nós conhecemos bem o produto." O carro também domina a clientela da oficina mecânica de Mamed Alves da Silva. Aos 85 anos, uma dor nas costas o tirou do batente e o proibiu de dirigir seu Fusca 66 totalmente original. "A única mudança foi o motor. Trocamos o 1200 pelo 1600 por causa das ladeiras", diz Francisco de Assis, filho de Mamed. "A maioria dos serviços é simples, como a troca da lona do freio e a limpeza do carburador." O herdeiro Yan Francisco, de 13 anos, neto de Mamed, trabalha como mecânico de confiança na oficina. "Ele já sabe trocar e até regular o carburador", orgulha-se o pai. A fama do Fusca em Cunha é garantida historicamente por homens como Roque Benedito de Oliveira, de 61 anos. Desde que começou a dirigir, Roquinho soma dez Fuscas na carreira. Hoje tem dois. O vermelho, ano 68, não anda bem das pernas. "Por 2000 reais, eu vendo." O verde, ano 69, inteiramente original e "com cheiro de novo", é relíquia inegociável. Outro "fuscólogo" é Jairo de Carvalho Osório, o Lau. Aos 60 anos, traz 30 Fuscas no currículo. O atual é um dos poucos táxis da cidade. "Quem não tem Fusca e trabalha na roça precisa dos meus serviços", diz Lau, que cobra 15 reais a cada 10 quilômetros rodados em seu Fusca. Menos fanático pelo carro é o jornalista e escritor Moacir Japiassu, paraibano com passagens nos principais veículos da imprensa brasileira, autor de oito livros e que há cinco anos deixou São Paulo para morar em um delicioso sítio nos arredores de Cunha. O Fusca ano 71 foi comprado pelo pai do jornalista em 1976 para que ele pudesse se deslocar da cidade ao sítio e acompanhar as obras. Hoje, o carro é dirigido pelo caseiro Severino Cardial da Silva, o Bininho, 65 anos. Japiassu, nas raras vezes que se aventura fora do sítio, prefere um Toyota Hilux, ano 94. "O Fusca é muito duro para mim. Cunha não é lugar nem de carros caindo aos pedaços nem de exemplares de colecionador. Os Fuscas que tomam conta da cidade são os carros do dia-a-dia, batidos, arranhados, sujos, mas com um grau aceitável de cuidado. Há, no entanto, um ou outro que salta aos olhos: desde os modelos anos 60 até uma única unidade remanescente da Série Ouro, a última leva, produzida pela Volkswagen em 1996. A dona, Leonídia Mariano Ferraz da Silva, 38 anos, leciona na zona rural, mas pre-fere ir de ônibus a maltratar o carro que marcava apenas 62345 quilômetros rodados quando a visitamos. Ela comprou o Fusca por 9500 reais há dois anos e já recusou proposta de 16000 reais feita pelo ex-proprietário. O carro da auto-escola de Cunha é um Fusca, claro. Mas a delegacia da cidade conta com um Land Rover 110 e um Santana para atender às poucas ocorrências - a maioria delas é de furtos e o último homicídio foi há 17 meses. Para entregar intimações em certos endereços, a delegada Silvia Souza precisa contar com a ajuda dos donos de Fusca. "Em algumas estradas de terra, o Land Rover não consegue fazer a curva", diz o investigador Everaldo de Pinho. "Um Fusca cairia bem", afirma. A cidade dos Fuscas não tem semáforo. Não há guarda de trânsito e ninguém é multado. Acidentes são raros. Essa "moleza" para o motorista causa um leve e desnecessário trânsito. "As pessoas param em fila dupla para bater papo em frente à padaria", diz Gilberto Jardineiro, paulistano e principal responsável pelo nascimento do pólo ceramista de Cunha. Visitar o ateliê do artista para assistir à abertura do forno noborigama, que atinge 1400 graus de temperatura, é programa imperdí-vel - a próxima abertura acontece no dia 7 de julho. Depois da visita, acelere 30 quilômetros pela sinuosa e bonita SP-171 e caminhe por meia hora até os 1850 metros de altitude da Pedra da Macela. Lá de cima, a vista da serra do Mar e das baías de Paraty, Angra dos Reis e Ilha Grande é inesquecível e merece horas de contemplação. Para garantir o visual, escolha um dia de céu azul, sem nuvens. Mesmo porque, se estiver chovendo e seu carro não for um Fusca...

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